A LENDA DE GAIA
Porém, o
brasão da cidade, bem como a fachada principal da Câmara Municipal, recordam
uma lenda de bravura que carateriza não só o povo desta região como também do
nosso país; estamos a falar da Lenda de Gaia, que Almeida Garrett registou para
a posteridade no seu Romanceiro com o
título “Miragaia” e sobre a qual afirmou (em 1847): «Este romance é a verdadeira reconstrução de um monumento antigo.
Algumas coplas são textualmente conservadas da tradição popular, e se cantam no
meio da história «rezada» ainda hoje repetida por velhas e barbeiros do lugar. […]
Foi das primeiras coisas deste género em que trabalhei; e é a mais antiga
reminiscência de poesia popular que me ficou da infância, porque eu abri os
olhos à primeira luz da razão nos próprios sítios em que passam as principais
cenas deste romance. Dos cinco aos dez anos de idade vivi com meus pais numa
pequena quinta, chamada «O Castelo», que tínhamos aquém-Doiro, e que se diz
tirar esse nome das ruínas que ali jazem do castelo mourisco. […] Assim olho
para esta pobre Miragaia como para
um brinco meu de criança que me aparecesse agora (…).» (in Romanceiro,
1997, Biblioteca Ulisseia, pp. 236-237)
Eis algumas
“coplas” desse poema (pp. 237 – 254):
Noite escura tão formosa,
Linda noite sem luar,
As tuas estrelas de oiro
Quem nas poderá contar!
(…)
E o rei veio de cilada
De além do Doiro passar,
E furtou a linda moira,
A irmã de Alboazar.
(…)
Com a voz enternecida
Assim lhe foi falar.
-«Que tens, Gaia… minha Gaia?
Ora pois! Não mais chorar,
Que o feito é feito…» - «E bem feito!»
Tornou-lhe ela a soluçar,
Rompendo agora nuns prantos
Que parecia estalar;
«E bem feito, rei Ramiro!
Valente acção de pasmar!
À lei de bom cavaleiro,
Para de um rei se contar!
«À falsa fé o mataste…
Quem a vida te quis dar!
À traição… que de outro modo,
Não és homem para tal.
(…)
«Perguntas-me o que miro!
Traidor rei, que hei-de eu mirar?
As torres daquele alcáçar,
Que ainda estão a fumegar.
«Se eu fui ali ditosa,
Se ali soube o que era amar,
Se ali me fica alma e vida…
Traidor rei, que hei-de eu mirar!»
-«Pois mira, Gaia!» E dizendo,
Da espada foi arrancar:
«Mira, Gaia, que esses olhos
Não terão mais que mirar.»
Foi-lhe a cabeça de um talho;
E com o pé, sem olhar,
Borda fora empuxa o corpo…
O Doiro que os leve ao mar.
Do estranho caso inda agora
Memória está a durar:
Gaia é o nome do castelo
Que ali Gaia fez queimar.
E d´além Doiro, essa praia
Onde o barco ia a aproar
Quando bradou - «Mira, Gaia!»
O rei que a vai degolar,
Ainda hoje está dizendo
Na tradição popular,
Que o nome tem – Miragaia
Daquele fatal mirar.
Já pelo excerto é
possível adivinhar uma história digna de um filme, mas vamos aos pormenores…
Esta lenda tem muitas versões, por isso optamos por contá-la da maneira que nos
pareceu mais interessante…
O rei Ramiro era
um rei cristão, cuja esposa se chamava Gaia. Um dia, visita o rei mouro
Alboazar (cujo castelo se situava na zona onde agora fica a cidade de Gaia) e
apaixona-se pela irmã deste, a qual se chamava Zara, e rapta-a.
Alboazar, como
vingança, rapta Gaia e leva-a para o seu reino, juntamente com a criada desta,
Peronela.
Entretanto, o rei
Ramiro, apercebendo-se do rapto, fica louco de raiva e, juntamente com o seu
filho e cavaleiros da sua confiança, dirige-se de barco pelo rio Douro ao reino
de Alboazar. Aí, disfarça-se de mendigo, deixando instruções aos seus homens
(que ficaram escondidos nas margens) no sentido de, ao ouvirem o toque do corno,
irem em seu auxílio.
Dirige-se assim
até uma fonte que ficava junto do castelo de Alboazar e aguarda que Peronela vá
buscar água para a sua senhora. Quando isso acontece, pede à criada (sem que
esta o reconheça) que lhe dê um pouco de água do jarro a aí deita o seu anel.
Quando Peronela
volta ao castelo, Gaia, ao beber da água do jarro, encontra o anel e logo o
reconhece como sendo do seu marido. Então, pede a Peronela que corra à fonte
para lhe trazer o mendigo à sua presença.
Peronela assim o
faz e o rei Ramiro encontra-se finalmente com Gaia, a qual lhe diz que Alboazar
está prestes a chegar e, por isso, deverá esconder-se no local que lhe indica,
até que chegue o momento ideal para se vingar do rei mouro.
Chegado Alboazar
ao castelo, Gaia pergunta-lhe o que faria se pudesse ter o rei Ramiro na sua
presença, ao que o rei mouro lhe respondeu prontamente que o mataria! Então, Gaia
mostra-lhe o esconderijo onde se encontrava o rei Ramiro.
Alboazar, vendo o
rei cristão perante si, pergunta a este o que faria se a situação fosse a
inversa. Ramiro afirma que tocaria o corno que trazia consigo, de modo a chamar
todas as pessoas do reino, para presenciarem essa morte e assim festejarem tal
acontecimento. O rei mouro achou a ideia genial e concretizou a sugestão.
No entanto, perante
o toque do corno, logo surgem os companheiros do rei Ramiro, que facilmente
vencem os mouros, deixando o castelo em chamas.
No regresso ao
barco que os trouxe ao reino mouro, quando já tinham começado a viagem de
regresso a casa, o rei repara que Gaia chora; ao perguntar-lhe o motivo de tal
choro, ela responde que está triste pela morte do seu amado Alboazar.
Quando ouve tais
palavras, o filho diz ao pai que a sua mãe é indigna de continuar viva e assim
o rei Ramiro ata-lhe uma corda ao pescoço, juntamente com uma pedra pesada, mas
antes de a atirar borda fora diz: «Pois mira Gaia que esses olhos não terão
mais que mirar!».
É linda, não é,
esta lenda? Pois, para 2020, acreditamos que haverá toda uma dinâmica à volta
desta história, seja através de representações de rua, de pratos, doces e
bebidas alusivas ao tema (que tal: Francesinha à rei Ramiro? Castelinhos
folhados Alboazar? Corn[o]ucópias
rei Ramiro? Jarro de sangria Peronela?) ou ainda através de uma série de
produtos de “merchandising”, pois a cidade tem potencialidades para atrair
IMENSOS turistas nacionais e estrangeiros. Por isso, vamos lá continuar a «colocar o Douro no mapa internacional»!